sábado, 28 de novembro de 2009

chove à noite no rio

chove à noite no rio

Chove à noite no rio
e da janela do meu apartamento
eufórico
sinto o pulsar inconstante
da humanidade
nada tem a ver com nada
mas tudo é tão sincrônico
esta rede de ações e reações
a mim intriga

chove à noite no rio
e da janela do meu apartamento
pontos vermelhos fogem
fingem
outros piscam
interagem sem o perceber
em cada automóvel
uma história dirige
a minha vida
é a rede...
de intrigas

chove
e na janela
transpassa um micromundo
o silêncio – cheio de vazios
uma sensação déjà vu
grita na presença do senhor dos ventos

à noite
no meu apartamento
no apartamento ao lado
qualquer percepção é macropercepção
quando o negrume dominante invade
sou ouvidos e tatos
absurdamente procuro o sono
sentinela de plantão
em cada calçada
da minha vigília

no rio
o pulsar de um planeta...
o meu pulsar
azul-água
sou apêndice a esse todo
pulso avenidas e ruas
em disparada expansão

chove à noite no rio
na zona sul, na zona norte, na zona oeste
simplesmente chove
chove...
na zona...
e na porta do meu apartamento
uma madame...
satã de irônico sorrizinho
justifica-se:
são tantas incógnitas os cruzamentos
e lá em baixo na calçada um interrogativo hidrante
se pergunta: porra! o que faço aqui?

piso a faixa branca da siqueira campos
ou da mem de sá, sei lá!
surdo, cego e mudo
me atropelo em minhas aberrações

chove à noite no rio
eu no meu apartamento
insisto, insisto, insisto
deliberadamente
em minhas delinquências

febre

(para Nilton Alves)


Os arcos da lapa
ardem de febre
é − ardem
junto a eles as moças-de-boa-família
ardem de febre
os bondes-de-teresa sobrevoando
ardem de febre
cães e postes dualidade inseparável
ardem de febre
as ratazanas que atazanam os hot-dogs
ardem de febre
(cebolas e pimentões também)
os holofotes imaginários desse palco
ardem de febre
é − ardem
a poesia espreita pelas esquinas
elas?
ardem de febre

e eu nesse semáforo quebrado
espero e espero o frio passar
é − espero...

in Código de barras, Sérgio Gerônimo, OFICINA, 2007

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pêssego

encostei
costa a costa
qual náufrago sôfrego
arfava de tantas braçadas
em ondas surfistas
pensei atracar e te explorar
porém
costas surdas areias alheias
vegetação vadia e um quê
de pura anarquia
ativou meus sonares
meus arquivos e fechei o programa
saí desordenado
dobrei as mangas
por fim pequei
mordi
lambi
comi
e o gosto veludo
de teu pêssego amordaçou
o céu que em minha boca
teimava em excitar teus calores
voltei à praia bêbada
e bêbado com o marulhar
engoli tua pele, pêlos, carne
deliciosamente
cuspi o caroço
inoculando
e enlouquecendo
a tua semente

Do livro COXAS DE CETIM, 2000, Sérgio Gerônimo, Oficina Editores.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

tive medo!
abandonei meus cadernos / rascunhos mofados / que vida era aquela? // uma sombra conduzia meus pés / a se enfiarem pelas mãos / elas que se manchavam de letras / escorrendo pelo corpo / entranhando sensações // não aguentei! / inventei amanheceres / desconheci escuridões / gelei sangue / e sanguessuga / coagulei instintos // se fosse valer a pena / eu teria escrito quase todos / penso até que imitaria alguns / sou heterônimo das rubricas / enlouquecidas de devassidão / em vigílias de devastidão / terra arrasada // sem preâmbulos e nem posfácios / pois seriam por demais explicadores /subverto-me / jogo-me em outras vidas / não escrevo mais / deixo que acreditem / desprezo qualquer desespero / e tudo isto / é pura leitura de entretenimento

in, CONVERSA PROIBIDA, de Sérgio Gerônimo & Flávio Dórea , 2009
Sérgio Gerônimo no evento Terça ConVerso no Café, Teatro Glaucio Gill, Copacabana, Rio/RJ, coordenação do Grupo Poesia Simplesmente

Sobre CONVERSA PROIBIDA II

Conversa proibida é o cruzamento de muitas coisas que, em outras épocas, se separavam ou se contradiziam, mas que, na correnteza do nosso tempo, se entrefecundam. É, por exemplo, um livro de poesia escrito a quatro mãos: coisa rara ainda hoje. Ele se encontra entre a poesia lírica e a poesia dramática: poesia lírica no ponto da ebulição dramática, poesia dramática no ponto da contemplação lírica. E se, desse modo, os gêneros literários se confundem e redefinem, isso ocorre, não por mero exercício estilístico, mas como parte da descoberta e da celebração da matéria poética da vida contemporânea, cujos gêneros também se confundem e redefinem num turbilhão de desejo e criação, nylons e néons, livros antigos e celulares perdidos, língua e tesão, quartos sujos de motéis baratos e saltos altos, rimbauds e abismos, jogo e poesia. Vale a pena deter-se nas esquinas verticais desse livro vital e belo.

Antonio Cicero

se quiseres transar comigo / tens que ser profano / não escolho sexo / apenas que use teu corpo / frente e verso / o sexo dos anjos / os movimentos nossos / dança celestial / banhada em hóstia e vinho / o toque / só com os olhos / o ato, seu cheiro / já ouço até as trombetas / beatificando nosso ritual / e ao final absinto, rimbaud e abismo

in Conversa proibida, Sérgio Gerônimo & Flávio Dórea

domingo, 15 de novembro de 2009

código de barras

Nenhum tempo é suficiente
o facho de luz verde/vermelho
senvergonhamente lê espaços
escala linhas verticais
escaneia do topo ao sopé
horizontal lente
integra indistintamente números e letras
páginas e rótulos
é soberano
não existe leitura igual
nem sentimentos desprezíveis
sequer expressões do tipo
já conheço!
são únicos
demonstra surpresa no ato
quando desata os nós dos vocês
individualmente marca
registra a tatuagem − você
manifesta-se ao mundo por extensão
vértices vindo em algarismos
se zero ou um − binariamente não sei
xis, ípisilon ou zê de séries inimaginávies
em vademecuns perdidos talvez

mas você é código
(inviolável)
ser código é até plausível
puras exclamações
barra é ser poeta

Sérgio Gerônimo, in Código de barras, Oficina Editores, Rio/RJ, 2007

terça-feira, 10 de novembro de 2009

SOBRE CONVERSA PROIBIDA I

“O trabalho que vocês fizeram é simplesmente fantástico. Conversa Proibida tem que virar referencial da poesia aqui no Brasil. É um trabalho da maior seriedade”.

Conversa Proibida é a afirmação de que a palavra tem vida própria e que o poeta é apenas o veículo de sua manifestação. Talvez por isto este livro seja tão verdadeiro, e de certa forma imaculado em sua essência, pois independente da vontade de seus condutores, e eles, não tenho dúvidas respeitaram esta visão; é vivo e assim o permanecerá por muito tempo.

Pobre destes poetas, servos da palavra e de seus “parimentos”, servos da poesia e de suas amplitudes... Ainda assim eu os saúdo e bendigo pela coragem de se prestarem ao desentranhamento de tão belos versos.

Conversa Proibida é, certamente, um dos melhores livros de poesia que tive a oportunidade de ler, uma obra que deve servir de referencial e fonte de inspiração para muitos outros, pela coragem, pela profundidade e pela sinceridade de seus autores.

Bendigo a comunhão destes dois poetas, pois mantidas as suas individualidades conseguiram gerar pura poesia para permanecer por muito tempo em minha mente, em meu coração.

Naldo Velho — poeta, ativista cultural, coordenador dos eventos MÚSICOS CONVIDAM POETAS, em Niterói/RJ e “TODAS ELAS E ALGUNS DELES”, no Rio/RJ.
Via e—mail 01/09/09, às 12:51h, naldovelho@gmail.com

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O ex-peito que virou 44

Não adianta Não te levarei ao Rio para a festa E assim ficou decidido Como ir a algum lugar de peito rachado, quebrado? Nem pensar! Wanja, filha mais velha dos Delcattles, casada com Coronel Selva, determinou o fim do sarau, que sua mãe esperava há um ano Mulheres! São seres do sexo frágil Mas a história é marcada de feitos bem diferentes, provando o contrário Lembrem das Joanas D'Arc, Anitas Garibaldi, Cleópatras, Wanjas É! Wanja faz parte deste naipe heróico Decididas Autoritárias Valentes Sensíveis A vida está sempre por um fio Será que Ariadne (mulher de Dioniso-baco) sabia desse pormenor, ao entrar no labirinto do homem-touro, o minotauro, com seu novelo de lã? Pois bem, no dia anterior Wanja desequilibrara-se dos seus saltos altos, afinal até Luís XV, também, desequilibrava-se Ao tentar um apoio na cristaleira, chei-a-de-de-dos, fôra ao chão Como pão com manteiga, de pobre, sempre cai com a manteiga voltada para baixo Assim foi, Wanja despencando dos píncaros, saltos dez e meio, estatelando os peitos no sinteco da sala As paredes fingiram que não viram Houve um estalido estarrecedor, dor nenhuma Refletido no sinteco o peito esquerdo agonizava O teto se fechou Portas emudeceram E agora? Como comprar o jornal naquela fofoqueira banca? E a manicura de língua solta? Meu deus! E se o peito resolver derreter-se pelo buraco, rachado que fôra? E o mais alarmante Onde comprar outra prótese naquele local? Wanja tivera ''aquela doença'', que já está mais do que na hora das pessoas falarem o nome Isso mesmo: câncer Há seis anos ela descobriu um caroço, mais que suspeito, em seu seio esquerdo, apesar de todos os exames periódicos, apalpamentos e outros apalpos mais Ao deparar-se com o irremediável sentiu de imediato que não poderia conviver com o tal do caroço Não foi fácil Exames e mais exames Por fim, a cirurgia marcada Mastectomia radical do seio esquerdo Mulher de fibra, como se diz por aí, ela não titubeou Doutor! Vamos à cama, ou melhor à mesa, de cirurgia é claro A operação foi revestida de sucesso Wanja mitologicamente Diana, a caçadora recuperou-se plenamente de forma fantástica Não utilizou radioterapia e nem quimioterapia Um espanto, segundo os médicos Mas Wanja conhece a sua força Disse que só usaria aquelas terapias se uma voz interna clamasse Não houve a voz Hoje Wanja refez os peitos, milagres da medicina, fez plástica no abdômen e prepara-se para umas ''esticadinhas'' no rosto É, o mundo mudou Em tempo: Orides, mãe de Wanja, telefonou para seu filho caçula, que estava no Rio, naquela ocasião, e travou-se o seguinte blábláblá Veja só, sua irmã rachou o peito Disse que não me levará praí Ah! Sobrou pra mim, é mole? Mãe pega leve, ela está despeitada, pois quebrou o peito Deixa que eu meto o peito na estrada e vou te apanhar Bem, que fique patenteado, hoje, Wanja, a do ex-peito quebrado 48, e a despeito de qualquer modelo, empinadamente, ostenta seu novo peito 44.
Sérgio Gerônimo, in OFICINA MAIS PROSA

CONVERSA PROIBIDA 2

poemanocio


poemanocio
pronuncio assim:
o poema não me é fiel
na madrugada de sons abafados
palavras disputam palavras
torrentes de fonemas reticentes
rasgo folhas, respiro letras
reescrevo o texto
(ele nunca será meu)
sinto falta dele (o anterior)
mas...
meu poema tem pernas – ventosas
sugam ouvidos incautos
e nem se dá conta
que nas sombras dos momentos
(longe da minha escrita)
sua alma pode me corromper
rapidamente amasso o rascunho
eu permito tudo
ele se entrega
que os leitores se deleitem
com os comos e porquês sugeridos
quantos mais possuí-lo
melhor
que seja sempre essa a leitura
permissível a todos
a fidelidade dele está em sua página imaculada
nem sempre branda a minha é inventá-lo
somos leais e cúmplices do nosso destino
ele: vagar em prateleiras e mãos
eu: paternidade de versos
de pretensa maneira
poeiras
em total esquecimento

Sérgio Gerônimo & Flávio Dórea, in CONVERSA PROIBIDA

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CONVERSA PROIBIDA 1

Gênesis

por muitas vezes
me sinto deus
sou gênesis em seduzir...
um homem
e trabalho incessantemente
sete dias sem descanso
canso de transá-lo
em meus desejos
e em cada versículo
surubeio as minhas vontades
a cada cântico
uma pausa
um apóstolo
a santa ceia perfeita
em lençóis brancos
deito-me com mateus
acordo paulo e thiago
e me deleito
entre marias e madalenas
vinho e hóstia
apalpo peregrinos
ressuscito
todos os falos
e por que não
dedilhar as suposições
enterradas
em blue jeans
empalados
crucificados


Sérgio Gerônimo & Flávio Dórea, in CONVERSA PROIBIDA

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A HÓSTIA PROFANADA

Vivi e Magma eram amigas inseparáveis. Fazia cinco anos desde aquele, inesquecível, encontro na bienal do livro. Vivi procurava um livro erótico, para satisfazer suas curiosidades mais íntimas e acabou encontrando... Magma perambulava por entre os estandes à procura de não sei quem. No entra-e-sai dos estandes as duas jovens se esbarram. Uma desculpa daqui, outra dali e estavam bebericando em um dos bares espalhados pelo pavilhão de exposições. Papo vai, papo vem, Vivi foi terminar a noite na casa de Magma. O dia amanheceu uma vez, duas vezes, três vezes e... Vivi e Magma curtiam a vida, juntas, há cinco anos. Vivi de religiosidade a toda prova, praticante, etc e tal. Magma religiosa por conveniência, tipo esses bares de posto de gasolina, vinte e quatro horas no ar. Todo domingo, às oito horas da matina, Vivi e Magma na quarta fila dos bancos reservados às beatas. Vivi fervorosa. Magma fervendo. Na terceira fila oposta, olhos cruzados, xale entreaberto e um enigmático jogo de dedos trêmulos. Vivi: candura. Magma: arapuca. Vivi viajando para visitar seus pais em outra cidade, no interior do estado. Magma viajando no interior das orações, à procura, sempre, de não sei quem. Eis que de repente (será?), olhos cruzados, xale entreaberto e um enigmático jogo de dedos trêmulos em sinal de qual cruz? Magma esbarra na terceira fila oposta. Uma desculpa daqui, outra dali e estavam almoçando. Magma e Olhos Cruzados curtiam a vida, juntas, há uma semana. Semana de orações e corações em festa. Olhos Cruzados era só fervor. Magma fervendo. Olhos Cruzados em todos os encontros comungando sua paixão. Magma acompanhando para não perder sua presa e guardando sua comunhão no bolso traseiro da calça de brim, justíssima. Vivi voltando do interior. Magma voltando, também de um certo interior, o seu encontro de fé. Vivi desconfiou de tanto fervor, mas uma semana longe de Magma a deixou com as lavas incandescentes e enquanto retirava suas roupas, iniciou uma briguinha para animar os ânimos. Magma estava esquisita e Vivi foi certeira, no alvo. O que houve? Arrumou outra, é? Que isso, minha santinha, no meu altar só dá você! Vivi sem as roupas ensaia uma pose provocante à Magma. Conta logo! Desembucha! Prefiro saber por você! Bem, Vivi, é que durante a semana, senti tanto a sua falta, fiquei tão sozinha, que fui rezar todos os dias, fiz até comunhão. Vivi não acredita e, agora, toda nua, de corpo aberto incita Magma. Vem, me prove! Magma imediatamente enfia a mão no bolso traseiro da calça de brim, justíssima, retira uma hóstia, mostra-a e estica o braço em direção a Vivi. Vivi grita de horror. Sua herege! Não vê que estou nua! Saia já daqui! Daqui prali e de lá pracá... Tudo voltou ao normal. Vivi fervorosa. Magma fervendo.

Sérgio Gerônimo, in OFICINA MAIS PROSA AINDA